sexta-feira, outubro 05, 1990

Um Português no Pamir

Escaladas de 6100m e de 7104m no Tadjiquistão-
Acordei com um terrível sobressalto a meio da noite gelada. No ar rarefeito a 6400m, apertado dentro da tenda, tinha-se-me tapado o nariz. Ergo-me dentro do saco-cama debatendo-me com esta contrariedade que não me deixar mais dormir.
Decido sair - talvez o ar frio me auxilie.
Ao mover-me salpico o interior da tenda com o gelo que se formou nas suas paredes - é proveniente da nossa respiração que condensou e gelou.
Mal desponto a cabeça de fora o choque térmico nos meus pulmões é fortíssimo e deixa-me muito ofegante.
A noite está radiosa com o céu claro e estrelado iluminando as grandes montanhas em redor. O espectáculo é grandioso mas os cerca de 25o negativos não permitem devaneios. Sinto-me melhor e preciso de descansar.
Amanhã partimos para o cume.
Em 1990 decidi conhecer pela primeira vez a grande altitude e juntei-me a um grupo de amigos franceses para tentarmos a escalada de um 7000m no Pamir.
As inúmeras escaladas e raides de ski-alpinismo nos Alpes deram-me técnica e experiência para participar com confiança nesta expedição.
No entanto, sete mil metros de altitude é bastante mais alto que os 4807m do Mont Blanc - o ponto mais elevado da Europa Ocidental - que escalara cinco vezes por vias diferentes, uma das quais para o descer em ski.
O projecto era aliciante e desafiador ainda para mais por nenhum de nós ter experiência da grande altitude. Todos levávamos conhecimentos teóricos sobre a táctica de aclimatação e de ascensão, mas nenhuma prática.
Encontrei-me com a equipa em Moscovo: o Alain e o Jean François (Jeff) de Toulouse, meus conhecidos das escaladas em Chamonix, e o Patrick e a Isabelle de Lyon, que se viriam a juntar a nós.
Passados dois dias de visita a Moscovo tomámos o avião para Osh na República da Kirghizia.
O voo pareceu-me demorar toda a noite e acordei, já o sol brilhava, com uma asa de frango gordurenta e um arroz ralo na minha frente - era o pequeno almoço "signé" Aeroflot.
A organização tínha-nos preparado outro pequeno almoço de reforço no aeroporto - um autêntico manjar - que nos permitiria sobreviver um dia inteiro de camioneta por uma região muito montanhosa em direcção ao maciço do Pamir, situado na República do Tadjiquistão.
Esta cadeia é o prolongamento do maciço de Karakoram e estende-se do norte do Paquistão e Afeganistão ao deserto de Taklamakan na província chinesa de Xingiang.
Nesta região vivem os povos kirghiz e kazhak que antigamente se deslocavam livremente entre o mar Cáspio e os grandes planaltos do oeste da China e do Tibet. No tempo em que eram aliados de Genghis Khan e as "Montanhas Celestiais" garantiam a sua protecção.
Conhecendo o relevo, é fácil de entender como até ao início deste século a região se tem mantido tão isolada, excepção feita aos viajantes que, como Marco Polo, percorriam a Rota da Seda para penetrarem na Ásia Central.
Nos dias de hoje os costumes mantêm-se como há séculos e a vida decorre rude e pacata como sempre. Encontram-se todavia algumas excepções à tradição como a botija de gás à porta da tenda "yourt" ou a motocicleta velha com "side-car".
A base da alimentação é ainda o leite de égua e a carne de carneiro. A sua economia baseia-se na pastorícia e o cavalo continua a ser o meio de transporte privilegiado.
"Os cavalos são as asas do nosso povo", diz um provérbio kirghiz. Este animal assume desde sempre um papel de destaque na vida destes povos sendo a sua presença constante no imaginário colectivo. Cortejar uma mulher dizendo-lhe que se parece com um cavalo é um grande piropo e, ao invés, criticar um cavalo é uma afronta para o seu dono. Ainda hoje se realizam corridas e jogos tradicionais, sendo o "buz kashi" o mais praticado e apreciado: duas equipas a cavalo disputam entre si um bezerro decapitado tentando colocá-lo num círculo ao centro do campo - é um jogo muito violento, comparável a um rugby a cavalo.
Depois de horas de todo-o-terreno pela estepe verdejante chegamos ao campo de Ashik Tash a 3600m terrivelmente fatigados e moídos. Em conversa com outros franceses tomamos conhecimento da enorme tragédia: na véspera, ao fim da tarde, abatera-se uma imensa avalanche sobre o campo 2 a 5200m do Pico Lenine (7134m) sepultando 45 alpinistas: 26 russos, 10 checos, 2 alemães, 4 israelitas, 2 suíços e 1 espanhol. Salvaram-se somente um russo e um checo com graves congelações e hipotermia. Este acidente é considerado a maior tragédia da história do alpinismo.
Tratei de enviar imediatamente um telegrama à minha mulher para sossegá-la pois a notícia iria correr rapidamente.
No dia seguinte iniciámos o nosso programa de aclimatação à altitude escalando o Pik Piotrovski (4800m) que ofereceu muito pouca resistência. Este processo de adaptação do organismo à altitude é necessário quando não se utiliza oxigénio engarrafado.
A 7000m a composição do ar é idêntica à do nível do mar, o que varia é a pressão atmosférica. Sendo ela reduzida, o organismo tem de compensar-se: cria glóbulos vermelhos em excesso para fixar mais oxigénio e multiplica os alvéolos pulmonares igualmente com esse fim.
Nestas condições vive-se num delicado equilíbrio fisiológico em que devemos vigiar-nos atentamente e hidratarmo-nos o mais possível para permitir ao organismo regular a fluidez do sangue e, assim, evitarmos os edemas, pulmonares ou cerebrais. Neste processo o sangue torna-se mais viscoso e tem maior dificuldade em irrigar as extremidades facilitando as congelações.
Dois dias de estada em Ashik Tash foram suficientes para uma aclimatação preliminar e partimos para o campo de Moskvina a bordo de uma caranguejola voadora: um helicóptero da Aeroflot. Uma hora de voo para o interior do maciço deixou-nos absolutamente maravilhados com o espectáculo montanhoso em que penetrávamos. Viajámos de escotilhas abertas e cabeça de fora, sem fôlego e de cara gelada.
O campo de Moskvina, a 4300m, seria a nossa base e daria acesso a vários picos, entre os quais o Pik Kommunisma (7495m) e o Pik Korjenyevska (7105m). Este campo está situado numa grande bacia entre altas montanhas e na confluência de dois glaciares - o espectáculo não podia ser mais deslumbrante !
No dia seguinte partimos para o Pik Vorobyovski (5300m) que alcançamos em dois dias. A ascensão decorreu sobretudo sobre cascalho, o que é muito incómodo, mas é preciso ganhar altitude. Acima dos 4000m é necessário cumprir-se um programa de adaptação à altitude. Consiste em atingirmos altitudes cada vez mais elevadas, de forma progressiva, para permitir ao organismo adaptar-se. Aplica-se a conhecida regra: "Escalar alto, dormir baixo".
Voltamos ao campo base para descansarmos um dia, e..."c'est parti" de novo. O nosso objectivo agora é o Pic des Quatre (sommets) com 6300m. Uma bonita agulha toda nevada com um aspecto um pouco abrupto.
Subimos o longo glaciar até ao campo 1 a 5000m, onde nos juntamos a um grupo de russos de Sverdlovsk. A sua hospitalidade é muito calorosa e querem dar-nos de jantar - aqui janta-se às 18h. Mal chego tenho já um prato de sopa numa mão e um naco de pão na outra, e pessoas ainda a oferecerem-me queijo, chá, sardinhas de lata, etc. A sua ânsia de contactar com estrangeiros é enorme e orgulham-se de nos acolherem no seu país.
Todos conhecem Portugal e querem saber o mais possível sobre o mundo exterior. A evolução da "perestroika" também é muito discutida e a grande estrela do momento é Boris Ieltsin que, para grande orgulho dos nossos "anfitriões", é também natural de Sverdlovsk. A conversa, muito animada, teve de ser interrompida pela disciplina horária que rege estas ascensões.
De manhã inicia-se uma dura etapa em neve e gelo até aos 6000m do campo 2. As mochilas pesam e o declive, muito alpino, obriga a um bom esforço.
Não foi fácil descobrir a exígua plataforma, onde mal cabiam as nossas duas tendas - o único local possível na íngreme vertente -, no meio de um vento forte e gélido.
Atingimos o cume no dia seguinte, não sem um inesperado e duro esforço através de um corredor (1) coberto de gelo vivo.
De volta ao campo base confrontaram-nos com uma dura decisão: o Pik Kommunisma, que era o nosso objectivo, apresentava um forte risco de avalanche e a organização russa tinha-o interditado. Ou esperávamos que as condições se alterassem, ou decidíamo-nos pelo Pik Korjenyevska. Tomámos esta última opção.
Partimos após dois dias de descanso. Eu não calçava meias pois tinha os dedos dos pés inchados devido ao frio muito intenso que sofrera no Pic des Quatre, pois certamente tinha apertado demasiado as botas reduzindo a circulação. A médica russa que me tratou disse-me que teria sempre que sentir os dedos, caso contrário que descesse imediatamente. A minha apreensão era grande mas a vontade de chegar ao cume muitíssimo maior.
No segundo dia de escalada chegamos ao campo 2 após uma longa e bonita travessia em neve com o tempo a piorar bruscamente: a temperatura e a neve a caírem auxiliadas por um vento gélido.
Este campo a 6000m, situa-se sobre o ombro da aresta noroeste e o espaço é escasso para as nossas tendas. Para cada um dos lados um descuido tem como consequência uma queda de muitas centenas de metros. Já lá se encontravam três tendas e pouco espaço restava para as nossas - tivemos de escavar a aresta de neve para o obter. Dois a dois revezávamo-nos na pá e no piolet (2) com frequência pois o esforço deixava-nos terrivelmente ofegantes.
Este contratempo atrasou-nos imenso o descanso. Quando devíamos estar deitados às 20h ainda esperávamos impacientemente que a neve fundisse. São necessárias cerca de duas horas para fundir os cinco litros de água para cozinhar e encher os nossos três cantis. A esta altitude, embora utilizássemos mistura de butano e de propano, a baixa pressão e o frio reduzem muito a eficiência do fogão. Em contrapartida, cozinhar é rápido pois os alimentos são liofilizados - tudo fica pronto em cinco minutos.
Acordámos com um sol radioso e com um ar calmo e fresco. Por cima de nós tínhamos uma secção de corda fixa em terreno misto (3) com alguma escalada em rocha. A seguir iniciava-se a longa aresta de neve que findaria no cume.
Uma equipa de japoneses descia com minuciosas medidas de precaução. Nós, como de costume, com a corda guardada na mochila, e bastões de ski em vez do usual piolet.
As mochilas pesam e o ritmo é lento: dezoito a vinte quilos às costas a esta altitude exigem um dispêndio de energia que deve ser muito controlado. Cada passo é medido, estudado e ponderado nas fracções de segundo que o precedem; os movimentos da coluna, da cabeça e dos braços estão em perfeita sintonia com o movimento das pernas para eliminar todo o desperdício de energia.
Chegámos ao campo 3 a 6200m onde se encontravam várias tendas. Os seus ocupantes que não tinham subido para tentar o cume, tinham-nas deixado guarnecidas e regressado ao acampamento base para melhor descansarem. É que nestas altitudes o organismo não regenera: ou se chega aqui com reservas vitais e morais para continuar a ascensão ou é preferível descer para melhorar a condição.
Vários alpinistas conversavam alegremente de tenda para tenda ao som do rugido surdo dos fogões que fundiam neve. Era fácil de detectar os que tinham descido do cimo nessa tarde pelo seu ar tenso e fatigado, pelas suas olheiras e a pele muito queimada do sol.
No momento em que sentados sobre as mochilas abríamos os cantis, um "parapente"(4) descontrolado abate-se à nossa frente. O piloto aos rebolões na neve, debatendo-se com os seus inúmeros cabos, consegue travar a queda para o abismo.
Resolve tentar de novo regressando ao ponto de partida.
Pouco depois retomamos a marcha. A nossa táctica consistia em subirmos mais uns duzentos metros para encurtarmos a etapa do dia seguinte ficando assim mais próximos do cume.
Deixando os meus companheiros continuar sentei-me na neve um pouco acima do parapentista para tentar conseguir uma boa fotografia. Não suspeitava que teria de esperar uns bons quarenta minutos pois a insegurança e o medo eram notórios no seu comportamento.
Lançou-se finalmente, mas novamente de forma precipitada. A vela tornou a não estabilizar e enrolou-se, mas agora era tarde demais. O piloto francês e o parapente desapareciam na vertente abrupta.
Fui encontrar as nossas duas tendas já montadas num local bem protegido do vento pela aresta de neve. De novo, enchemos um saco de neve para fundir, instalamo-nos na tenda e esperamos impacientemente pela água da nossa sobrevivência. Os alimentos têm um sabor terrível e temos de obrigar-nos a engoli-los rapidamente - é a altitude que nos provoca este mal-estar característico.
Como de costume, enfiamos tudo o que gela dentro do saco-cama: cantil, luvas, botas, máquina fotográfica. O espaço na tenda é diminuto e o desconforto é grande - para poupar peso havíamos decidido utilizar uma tenda dupla para nós os três.
Sete horas da manhã e o céu está descoberto, o ar calmo e o frio muito intenso. O silêncio é absoluto. Os cumes mais elevados começam a ser banhados pelos primeiros raios do sol.
De novo, fundimos neve para um chá bem quente, que acompanhamos com biscoitos. Os preparativos decorriam em silêncio pois, além de estremunhados, pairava sobre nós a incerteza quanto ao sucesso desta expedição. Muito embora as mochilas estivessem preparadas de véspera, tornámos a verificar tudo. Sairíamos o mais leves possível levando somente o estritamente necessário para alcançar o cume e regressar à tenda.
O Jeff estava tão ansioso que partiu à frente de todos. Eu debatia-me com as correias dos crampons (5) que gelaram durante a noite - com dois pares de luvas calçadas a tarefa exige perícia e muita paciência que nessa altura não abundavam. O Alain que esperava por mim, sentiu-se a arrefecer demasiado e partiu. Na tenda ao lado, o Patrick e a Isabelle, não davam mostras de grande actividade.
Embarquei finalmente numa viagem memorável. O silêncio era total e a paisagem gelada fazia-me sentir num mundo irreal. O avanço era terrivelmente lento devido às limitações da altitude e as noções de tempo e de espaço assumiam aqui outra dimensão. Uma dimensão totalmente desproporcionada e muito difícil de aceitar pois este é um jogo muito diferente dos outros: o elevado sacrifício físico e psíquico a que nos submetemos produz, por unidade de tempo, um avanço muito modesto e pouco compreensível ao olho vulgar.
Muito embora a forma física seja determinante é a vontade que é posta à prova. Na prática do alpinismo o desenvolvimento dessa vontade ao longo dos anos é crucial para se atingir o sucesso. É que somos confrontados regularmente com situações de risco que facilmente corroem essa determinação e que podem servir de pretexto bastante para se desistir da ascensão - às vezes a tentação é enorme, e vai crescendo à medida que estamos mais alto.
Olho para cima e vejo os meus dois amigos distanciados um do outro - parecem-me muito longe - o cume, nem falar. Nem quero sequer pensar. Concentro-me somente em manter um ritmo estável, e em parar o menos possível. A boa economia do tempo numa ascensão reside em caminhar lentamente, no limiar aeróbico, e reduzir ao máximo as paragens. Elas são todavia muito necessárias para acalmar um pouco a hiperventilação, que é o estado exageradamente ofegante em que vivemos.
Vejo nuvens de neve em rodopio mais acima; envolvem o Jeff. Espero que o vento não aumente de intensidade. Já levo as mãos e os pés gelados. Experimento imaginar-me numa praia portuguesa em pleno Verão, mas a ideia não me traz qualquer conforto. O sacrifício é tão grande que me pergunto para que é que decidi meter-me nisto. Ninguém pode ter prazer nisto ! Que raio de ideia vir para aqui arrastar-me na neve, ao frio - nunca mais quero passar por esta ! Vai ser a última vez ! Mas, desistir é que nunca. Irei até ao fim.
De repente lembro-me dos meus pés e dos conselhos da médica. Paro para mexer os dedos e, felizmente ainda os sinto. Passo a fazer pausas mais longas para os ginasticar, o que me vai atrasando, mas paciência.
Sou ultrapassado por um grupo de alpinistas do leste que me cumprimentam com grande simpatia. Um deles, o Alex, arménio, sabendo da minha preocupação, mandou-me sentar na neve e deu-me uma vigorosa massagem nas pernas e nas coxas. Dizia-me, ofegante, que iria sentir mais calor nos pés o que, infelizmente, não me pareceu acontecer embora lhe dissesse que sim.
Vejo o Patrick e a Isabelle mais abaixo; deve separar-nos uma hora.
A certa altura deixo a aresta para entrar na face, abaixo do cume. Sem a acção do vento o calor faz-se sentir e perco a sensação de frio. Sou mesmo obrigado a despir o volumoso casaco de plumas.
De repente, reconheço o Jeff que desce. Explica-me que esteve no cume e que não se sente bem, tem de descer rápido. Pergunto-lhe se falta muito - responde-me que o cimo é já ali, talvez mais cinquenta metros de desnível.
Não acredito ! Pela escala do cume parecia-me que estava ainda muito longe - mas que ilusão !
Quando cheguei ao topo, a 7105m, encontro o Alain só, sentado na mochila. Damos um forte aperto de mão. O contentamento é enorme e trocamos de máquinas fotográficas para registar o acontecimento.
O desejo de ali permanecermos é grande e passamos mais de uma hora sentados nas mochilas, apreciando o espectáculo de cumes nevados e de glaciares que se sucedem para lá da linha do horizonte. Não nos cansamos de elogiar as enormes beleza e grandiosidade do panorama em redor.
Chegam a Isabelle e o Patrick, depois uns canadianos e uns checos. Fotografias para todos - é o ritual da troca das máquinas fotográficas. Mas a alegria e a excitação não são exteriorizadas: a energia é já pouca e ainda nos preocupa a descida.
"Que c'est beau !", não nos cansamos de repetir. O nosso esforço é compensado com este sentimento indizível de satisfação e de plenitude, de domínio sobre o monstro debaixo de nós.
O espaço perde-se por cima de nós, sem limites físicos, a mente perdida no infinito, acima das coisas terrenas.
Gonçalo Velez

1990

NOTAS:
(1) - Corredor: canal coberto de gelo que desce do cume de uma montanha
(2) - piolet: picareta de alpinismo
(3) - terreno misto: rocha, neve e gelo
(4) - paraquedas dirigível
(5) - placa de aço de 12 pontas que se aplica na sola das botas


Nota: Estas são as primeiras escaladas portuguesas a cumes de mais de 6000m e de 7000m, realizada em Jul 90.

terça-feira, março 06, 1990

La Haute Route

La Haute Route 4000 de Zermatt em skis

A contemplação destas altas paragens nevadas e selvagens, no silêncio, deixa-me alheio ao passar do tempo, e era usual atrasar-me em relação aos outros. Desde manhã cedo que a intensidade do vento crescia e o ambiente vinha a adquirir um aspecto irreal pois estava saturado de minúsculos cristais de neve que cintilavam, em turbilhão, ao sol. Nesta densa névoa luminosa tinha deixado de ver o João (5) e os outros do grupo - apenas lhes seguia o rasto dos skis.
Á medida que ia subindo o vento tornava-se mais intenso e mais gélido, e perguntava-me se o refúgio estaria próximo. A minha situação tornava-se alarmante pois não estava equipado para suportar este frio tão penetrante durante muito mais tempo. O meu corpo começava lentamente a esfriar, sobretudo nos joelhos, que já davam sinais de terem ultrapassado o limite aceitável, e a cara, onde sentia o sangue a querer brotar do nariz e a solidificar na narina.
Não podia parar para melhor me agasalhar pois o rasto do resto do grupo desvanecer-se-ia em pouco tempo e, perdido neste temporal, não escaparia. Restava-me continuar a resistir e confiar que a cabana Marguerita me aparecesse a todo o momento.
O teleférico do Kleiner Matterhorn deixa-nos a uma altitude de 3884m, poupando-nos tempo e energia para atingirmos o planalto Rosa.
O nosso propósito era fazermos a travessia de toda a cumeada a sudeste de Zermatt, mais conhecida pelos 4000 de Zermatt ou a mais elevada Haute Route dos Alpes, escalando os seus cumes principais.
O Breithorn (4159m) é o primeiro, está próximo da saída do teleférico, e logo para lá nos dirigimos sob um sol radioso. Ofegantes, devido à falta de adaptação à altitude, paramos regularmente para recuperar o fôlego. Os nossos skis, equipados com fixações articuláveis e em cuja sola se colam peles de foca permitem caminhar, mesmo a subir. (1) (2)
Em pouco tempo chegamos ao colo onde a vertente se transforma numa aresta afiada, descalçamos os skis para os substituírmos pelos crampons (3) e largamos as mochilas.
Havia alpinistas sentados ao sol apreciando o panorama e cruzamo-nos com outros que regressavam do cume, trocando-se saudações e informações.
Descidos do cume, foi só descolar as peles e prender as fixações para deslizarmos rapidamente para sudoeste, pelos flancos do Breithorn, entrando em território italiano. Na carta estava marcado um abrigo de seis lugares, o bivaque Giorgio Cesare, ao cimo do Grande Glaciar di Verra a 3700m.
É um meio cilindro de alumínio no alto de uns rochedos e, para lá chegarmos, tínhamos de escalar uma forte vertente de neve. Mas, também não era necessário: já estava ocupado !
Eram germanófonos e tinham tido a preocupação de cravarem uns skis em cruz nessa vertente, e de nos gritarem como loucos, para avisar que estava cheio.
O refúgio mais próximo estava a 3004m de altitude, o Mezzalama - nem sequer pensámos em desviar caminho, e muito menos perder altitude: dormiríamos ali mesmo.
Com as nossas pás de avalanche cavámos um belo abrigo na neve com espaço para nos deitarmos os dois ao comprido, e pé-direito suficiente para nos sentarmos: un grand luxe, que até umas prateleiras lhe escavámos.
Estávamos a cozer esparguete, apreciando um sereníssimo crepúsculo, quando três alpinistas passaram por nós e se dirigiram de forma determinada para o abrigo, ignorando os avisos que vinham de cima.
"Ainda bem que optámos pela independência", disse para o João, "ninguém vai dormir confortável naquela lata sobrelotada".
Na manhã seguinte iríamos atravessar o cume do Castor (4221m) para o refúgio Quintino Sella a 3585m.
Antes fizemos um ligeiro desvio para escalarmos o Pollux (4092m), com a sua virgem de bronze cravada no cume.
Depois dirigimo-nos para a vasta face do Castor, onde já se notavam alguns grupos de ski-alpinistas partidos do Mezzalama de madrugada. Sabíamos que esta face era enfadonha por que na véspera tínhamos estado a seguir um solitário que se arrastava por ela acima, e só chegaria ao cume ao anoitecer. Certamente que foi obrigado a bivacar abaixo do cume devido à escuridão.
Uma ascensão com skis obriga a descrever v's para trás e para diante, tal como uma estrada que serpenteia numa encosta abrupta.
Pouco antes do cimo formavam-se grupos que, sentados na neve, faziam circular termos e biscoitos em alegre camaradagem. Notavam-se os menos experientes pelas suas expressões de tensão e de fadiga.
Faltava pouco para chegarmos ao cume.
Desceríamos pela outra face, com troços de ski delicado e outros de grande velocidade, até chegarmos ao refúgio Quintino Sella, onde secavam já vários pares de skis e suas peles, a maioria vindos de Itália.
Os locais públicos dos refúgios alpinos compreendem o refeitório, onde são servidas todas as refeições, e os dormitórios, cada quarto com dois níveis de plataformas alcochoadas sendo fornecidos um cobertor e uma almofada por pessoa. Não são locais para proporcionar grande conforto pois todos os que os frequentam são grandes amantes do ar livre, e servem somente para pernoitar.
No dia seguinte o sol regressa radioso, o ar muito calmo e fresco. Após o pequeno almoço tomado à pressa, forma-se um ajuntamento à porta do refúgio pois todos ansiamos por partir quanto antes. Os mais desastrados resvalam na neve pisando os skis do vizinho. Todos se equipam ao mesmo tempo numa confusão colorida de equipamentos dispersos em redor e ouvem-se comentários e exclamações em diferentes línguas.
Na tranquilidade luminosa da manhã formam-se duas colunas: uma dirigi-se para o Castor, a outra continua para leste, rumo à pequena cabana Marguerita, com 20 lugares, o refúgio mais alto da Europa a 4554m.
Saímos do glaciar di Felik para o ghiacciaio del Lis onde continuamos sempre ladeados pelas vertentes geladas e abruptas da cumeada do Liskamm (4527m). Preocupa-nos as densas nuvens de neve que observamos lá em cima na aresta, sinal de vento muito forte.
O glaciar de Lis está dividido em dois por uma monstruosa bossa de gêlo, Il Naso, um glaciar suspenso que desce do cume do Liskamm. A sua travessia é muito delicada pois está coberto de neve gelada. A zona superior está já exposta às rajadas de vento que nos ameaçam fazer escorregar. Somos um grupo de uns quinze que avança cuidadosamente. Quando prevemos uma rajada estacamos, cravamos bem os bastões na neve e inclinamo-nos na direcção do vento. Uma queda aqui poderia ser fatal.
Passada esta dificuldade, seguem-se vertentes suaves passando-se por zonas protegidas pelos flancos do Liskamm, onde o vento cessa e sentimos um enorme calor provocado pelos raios solares e a sua reflexão na neve.
Um dos nossos objectivos era escalarmos o Liskamm.
Chegados à base da sua via de ascenção o vento fustigava terrivelmente e estávamos convencidos de que teríamos de sofrer muito para chegarmos ao cume que não estava próximo. Um guia suíço com o seu cliente tomou a iniciativa e decidimos ficar a observar para ver qual era o resultado. Foi a única cordada, além de nós dois, que considerou esta ascenção.
Logo que deixámos de vê-los, definimos um período de tempo de espera a partir do qual seguiríamos no seu encalço.
Não demorou muito para que os víssemos descer, com neve entranhada em toda a roupa, sobrancelhas e barba, desmoralizados com tão curta tentativa. Ach mensch, du liebe zeit...!, exclamavam irritados.
Para se chegar à cabana Marguerita, situada no topo do Signalkuppe (4554m), tínhamos de descer primeiro a uma ampla depressão glaciar, o Lisjoch, para depois continuarmos para cima. Foi o seu agradável micro-clima, protegido dos ventos, que me atrasou, provocando uma situação crítica alarmante em que cheguei enregelado ao refúgio.
Todos os refúgios europeus têm de se encontrar abertos durante todo o ano pois a sua função é, desde sempre, albergar alpinistas em dificuldade. Quando não estão guardados, têm de manter aberta uma ala: o refúgio de Inverno, que pode ser só uma sala.
Este tinha dois dormitórios abertos, a sala de refeições e a cozinha fornecida de gás. Mal entrei, senti o ambiente de cálida e reconfortante humidade, criado pelos pequenos fogões de cada equipa, e pelo fogão da cozinha, onde um panelão estava permanentemente a fundir neve para toda a gente.
Fui calorosamente acolhido com um copo de chá fumegante oferecido pelo João, e foi com avidez que despi os agasalhos e descalcei as botas para me acercar da zona da cozinha donde se propagava o calor.
Os nossos companheiros, suíços, italianos, austríacos, alemães e espanhóis ocupavam o tempo das mais variadas formas: lendo, dormindo, cozinhando, jogando cartas, tagarelando, organizando o equipamento ou pasmando de cansaço.
O vento começou a amainar e logo pudemos saír para apreciar um pôr do sol apocalíptico, de grande profusão de côr e de luz estampados nas distantes nuvens. Uma excelente recompensa após a provação do final de tarde.
Este refúgio tem uma situação única pois foi montado exactamente no cume da montanha sobre uma plataforma construída de madeira. Está preso por diversos cabos de aço que o sustentam nos piores vendavais e a sua traseira pende sobre um estonteante precipício.
De manhã, acordei com uma potente dôr de cabeça e com os olhos muito inchados, sinal de uma ainda fraca adaptação à altitude. O João e vários outros também, a avaliar pelos ares apáticos. Sabíamos que perdendo altitude o mal desaparecia, mas a dificuldade residia exactamente em mover-nos !
Mesmo assim, aproveitámos a manhã para escalar dois cumes nas redondezas: o Zumstein Spitze (4563m) e o Parrot Spitze (4432m).
Depois calçámos as tábuas e descemos o longo glaciar Grenz rejubilando de prazer pela grande velocidade que a boa neve nos permitia alcançar. De vez em quando tínhamos de parar para descontraír as pernas pois a descida era muito longa.
O nosso objectivo seguinte era o Dufourspitze (4634m), o segundo cume mais elevado da Europa, mais conhecido pelo Monte Rosa. Estudando a carta, constatámos que o refúgio que lhe dá acesso, o Monte Rosahütte, se situava muito em baixo, a 2795m. Não valia a pena descermos tanto para tornarmos a subir pelo mesmo caminho na madrugada seguinte. Assim, resolvemos bivacar a meio do caminho, mas não sabíamos bem aonde. Atravessámos para o Rosagletscher a uma cota de 3500m e subimos pelo glaciar até encontrarmos um local apropriado.
Sentia-me contente por dormir novamente ao ar livre, num buraco escavado na neve. A sensação de solidão no majestoso silêncio de fim de tarde na montanha, apreciando a última luz do dia e fazendo parte desse crepúsculo, é de uma poesia indescritível. Sabemos que somos as únicas almas nas redondezas e que estamos irremediavelmente sós !
O dia raiou resplandecente, e saímos da nossa toca logo que os raios do sol chegaram até nós. A umas dezenas de metros passavam grupos de alpinistas provenientes do Monte Rosahütte que, com ares estremunhados, subiam lenta e silenciosamente no ar gelado. Nós os dois, que havíamos dormido muito bem, não nos cansávamos de elogiar a decisão que nos permitiu acordar tarde, e ainda para mais com toda a privacidade e em silêncio.
Após um chá com biscoitos, iniciámos uma longa ascensão até ao colo do Dufourspitze. A última centena de metros seria delicada devido à vertente muito abrupta e à neve ainda gelada. Neste tipo de condições, a única defesa que temos contra os escorregões é que os nossos reflexos nos possibilitem travar de imediato a queda com as arestas do ski, pois se tombamos já não há safa possível.
No colo já se encontravam umas dezenas de skis espetados na neve. A partir daqui usávamos os crampons e o piolet (4) para escalarmos a aresta de cerca de trezentos metros de neve, gêlo e rocha.
O panorama tornava-se cada vez mais magnífico e, através do ar límpido, conseguíamos alcançar todos os grandes cumes do Valais entre os quais, e muito próximo, o conhecido Cervin, ou Matterhorn, (4477m).
Pouco abaixo do cume havia algumas passagens delicadas que provocaram ajuntamento e tempo de espera, especialmente devido a um grupo de principiantes de um clube suíço acompanhados por guias.
No cume, além das placas comemorativas e religiosas em bronze, cravadas na rocha à boa maneira suíça, encontrava-se uma caixa de folha que continha um livro onde cada um inscrevia o seu nome. Esse acto simples e simbólico deixou-nos o grato sentimento de que ficaríamos ligados à História daquela montanha.
A descida para Zermatt iria ser longa e fastidiosa: cerca de três mil metros de desnível, quase sempre em skis, enfrentando todo o tipo de neves e de vertentes.
O término do Grenzgletscher, uma longa e ampla planície glaciar, oferece o enorme prazer de deslizarmos suavemente mais de uma hora, atordoados de cansaço e com os pensamentos suavemente embalados.
Entramos na zona de sombra no final do glaciar, sinal de que o nosso périplo está prestes a acabar.
Olhamos para trás e observamos pela última vez o Monte Rosa, majestoso e resplandecente sobre o céu azul.


Gonçalo Velez
1989


(1) - As peles são coladas sob os skis com o pêlo dirigido para trás o que permite a necessária aderência mesmo para subir.
(2) - As fixações dos skis permitem duas posições: marcha, em que a bota articula num movimento de marcha natural presa ao ski no seu extremo posterior e, descida, em que o calcanhar da bota se fixa ao ski e todo o conjunto funciona como se fosse um normal ski de pista.
(3) - Crampons: placas de aço com 12 pontas cada que se aplicam na sola das botas para caminhar no gêlo.
(4) - Piolet: picareta de alpinismo

(5) - O João referido no texto é o Garcia.