terça-feira, março 06, 1990

La Haute Route

La Haute Route 4000 de Zermatt em skis

A contemplação destas altas paragens nevadas e selvagens, no silêncio, deixa-me alheio ao passar do tempo, e era usual atrasar-me em relação aos outros. Desde manhã cedo que a intensidade do vento crescia e o ambiente vinha a adquirir um aspecto irreal pois estava saturado de minúsculos cristais de neve que cintilavam, em turbilhão, ao sol. Nesta densa névoa luminosa tinha deixado de ver o João (5) e os outros do grupo - apenas lhes seguia o rasto dos skis.
Á medida que ia subindo o vento tornava-se mais intenso e mais gélido, e perguntava-me se o refúgio estaria próximo. A minha situação tornava-se alarmante pois não estava equipado para suportar este frio tão penetrante durante muito mais tempo. O meu corpo começava lentamente a esfriar, sobretudo nos joelhos, que já davam sinais de terem ultrapassado o limite aceitável, e a cara, onde sentia o sangue a querer brotar do nariz e a solidificar na narina.
Não podia parar para melhor me agasalhar pois o rasto do resto do grupo desvanecer-se-ia em pouco tempo e, perdido neste temporal, não escaparia. Restava-me continuar a resistir e confiar que a cabana Marguerita me aparecesse a todo o momento.
O teleférico do Kleiner Matterhorn deixa-nos a uma altitude de 3884m, poupando-nos tempo e energia para atingirmos o planalto Rosa.
O nosso propósito era fazermos a travessia de toda a cumeada a sudeste de Zermatt, mais conhecida pelos 4000 de Zermatt ou a mais elevada Haute Route dos Alpes, escalando os seus cumes principais.
O Breithorn (4159m) é o primeiro, está próximo da saída do teleférico, e logo para lá nos dirigimos sob um sol radioso. Ofegantes, devido à falta de adaptação à altitude, paramos regularmente para recuperar o fôlego. Os nossos skis, equipados com fixações articuláveis e em cuja sola se colam peles de foca permitem caminhar, mesmo a subir. (1) (2)
Em pouco tempo chegamos ao colo onde a vertente se transforma numa aresta afiada, descalçamos os skis para os substituírmos pelos crampons (3) e largamos as mochilas.
Havia alpinistas sentados ao sol apreciando o panorama e cruzamo-nos com outros que regressavam do cume, trocando-se saudações e informações.
Descidos do cume, foi só descolar as peles e prender as fixações para deslizarmos rapidamente para sudoeste, pelos flancos do Breithorn, entrando em território italiano. Na carta estava marcado um abrigo de seis lugares, o bivaque Giorgio Cesare, ao cimo do Grande Glaciar di Verra a 3700m.
É um meio cilindro de alumínio no alto de uns rochedos e, para lá chegarmos, tínhamos de escalar uma forte vertente de neve. Mas, também não era necessário: já estava ocupado !
Eram germanófonos e tinham tido a preocupação de cravarem uns skis em cruz nessa vertente, e de nos gritarem como loucos, para avisar que estava cheio.
O refúgio mais próximo estava a 3004m de altitude, o Mezzalama - nem sequer pensámos em desviar caminho, e muito menos perder altitude: dormiríamos ali mesmo.
Com as nossas pás de avalanche cavámos um belo abrigo na neve com espaço para nos deitarmos os dois ao comprido, e pé-direito suficiente para nos sentarmos: un grand luxe, que até umas prateleiras lhe escavámos.
Estávamos a cozer esparguete, apreciando um sereníssimo crepúsculo, quando três alpinistas passaram por nós e se dirigiram de forma determinada para o abrigo, ignorando os avisos que vinham de cima.
"Ainda bem que optámos pela independência", disse para o João, "ninguém vai dormir confortável naquela lata sobrelotada".
Na manhã seguinte iríamos atravessar o cume do Castor (4221m) para o refúgio Quintino Sella a 3585m.
Antes fizemos um ligeiro desvio para escalarmos o Pollux (4092m), com a sua virgem de bronze cravada no cume.
Depois dirigimo-nos para a vasta face do Castor, onde já se notavam alguns grupos de ski-alpinistas partidos do Mezzalama de madrugada. Sabíamos que esta face era enfadonha por que na véspera tínhamos estado a seguir um solitário que se arrastava por ela acima, e só chegaria ao cume ao anoitecer. Certamente que foi obrigado a bivacar abaixo do cume devido à escuridão.
Uma ascensão com skis obriga a descrever v's para trás e para diante, tal como uma estrada que serpenteia numa encosta abrupta.
Pouco antes do cimo formavam-se grupos que, sentados na neve, faziam circular termos e biscoitos em alegre camaradagem. Notavam-se os menos experientes pelas suas expressões de tensão e de fadiga.
Faltava pouco para chegarmos ao cume.
Desceríamos pela outra face, com troços de ski delicado e outros de grande velocidade, até chegarmos ao refúgio Quintino Sella, onde secavam já vários pares de skis e suas peles, a maioria vindos de Itália.
Os locais públicos dos refúgios alpinos compreendem o refeitório, onde são servidas todas as refeições, e os dormitórios, cada quarto com dois níveis de plataformas alcochoadas sendo fornecidos um cobertor e uma almofada por pessoa. Não são locais para proporcionar grande conforto pois todos os que os frequentam são grandes amantes do ar livre, e servem somente para pernoitar.
No dia seguinte o sol regressa radioso, o ar muito calmo e fresco. Após o pequeno almoço tomado à pressa, forma-se um ajuntamento à porta do refúgio pois todos ansiamos por partir quanto antes. Os mais desastrados resvalam na neve pisando os skis do vizinho. Todos se equipam ao mesmo tempo numa confusão colorida de equipamentos dispersos em redor e ouvem-se comentários e exclamações em diferentes línguas.
Na tranquilidade luminosa da manhã formam-se duas colunas: uma dirigi-se para o Castor, a outra continua para leste, rumo à pequena cabana Marguerita, com 20 lugares, o refúgio mais alto da Europa a 4554m.
Saímos do glaciar di Felik para o ghiacciaio del Lis onde continuamos sempre ladeados pelas vertentes geladas e abruptas da cumeada do Liskamm (4527m). Preocupa-nos as densas nuvens de neve que observamos lá em cima na aresta, sinal de vento muito forte.
O glaciar de Lis está dividido em dois por uma monstruosa bossa de gêlo, Il Naso, um glaciar suspenso que desce do cume do Liskamm. A sua travessia é muito delicada pois está coberto de neve gelada. A zona superior está já exposta às rajadas de vento que nos ameaçam fazer escorregar. Somos um grupo de uns quinze que avança cuidadosamente. Quando prevemos uma rajada estacamos, cravamos bem os bastões na neve e inclinamo-nos na direcção do vento. Uma queda aqui poderia ser fatal.
Passada esta dificuldade, seguem-se vertentes suaves passando-se por zonas protegidas pelos flancos do Liskamm, onde o vento cessa e sentimos um enorme calor provocado pelos raios solares e a sua reflexão na neve.
Um dos nossos objectivos era escalarmos o Liskamm.
Chegados à base da sua via de ascenção o vento fustigava terrivelmente e estávamos convencidos de que teríamos de sofrer muito para chegarmos ao cume que não estava próximo. Um guia suíço com o seu cliente tomou a iniciativa e decidimos ficar a observar para ver qual era o resultado. Foi a única cordada, além de nós dois, que considerou esta ascenção.
Logo que deixámos de vê-los, definimos um período de tempo de espera a partir do qual seguiríamos no seu encalço.
Não demorou muito para que os víssemos descer, com neve entranhada em toda a roupa, sobrancelhas e barba, desmoralizados com tão curta tentativa. Ach mensch, du liebe zeit...!, exclamavam irritados.
Para se chegar à cabana Marguerita, situada no topo do Signalkuppe (4554m), tínhamos de descer primeiro a uma ampla depressão glaciar, o Lisjoch, para depois continuarmos para cima. Foi o seu agradável micro-clima, protegido dos ventos, que me atrasou, provocando uma situação crítica alarmante em que cheguei enregelado ao refúgio.
Todos os refúgios europeus têm de se encontrar abertos durante todo o ano pois a sua função é, desde sempre, albergar alpinistas em dificuldade. Quando não estão guardados, têm de manter aberta uma ala: o refúgio de Inverno, que pode ser só uma sala.
Este tinha dois dormitórios abertos, a sala de refeições e a cozinha fornecida de gás. Mal entrei, senti o ambiente de cálida e reconfortante humidade, criado pelos pequenos fogões de cada equipa, e pelo fogão da cozinha, onde um panelão estava permanentemente a fundir neve para toda a gente.
Fui calorosamente acolhido com um copo de chá fumegante oferecido pelo João, e foi com avidez que despi os agasalhos e descalcei as botas para me acercar da zona da cozinha donde se propagava o calor.
Os nossos companheiros, suíços, italianos, austríacos, alemães e espanhóis ocupavam o tempo das mais variadas formas: lendo, dormindo, cozinhando, jogando cartas, tagarelando, organizando o equipamento ou pasmando de cansaço.
O vento começou a amainar e logo pudemos saír para apreciar um pôr do sol apocalíptico, de grande profusão de côr e de luz estampados nas distantes nuvens. Uma excelente recompensa após a provação do final de tarde.
Este refúgio tem uma situação única pois foi montado exactamente no cume da montanha sobre uma plataforma construída de madeira. Está preso por diversos cabos de aço que o sustentam nos piores vendavais e a sua traseira pende sobre um estonteante precipício.
De manhã, acordei com uma potente dôr de cabeça e com os olhos muito inchados, sinal de uma ainda fraca adaptação à altitude. O João e vários outros também, a avaliar pelos ares apáticos. Sabíamos que perdendo altitude o mal desaparecia, mas a dificuldade residia exactamente em mover-nos !
Mesmo assim, aproveitámos a manhã para escalar dois cumes nas redondezas: o Zumstein Spitze (4563m) e o Parrot Spitze (4432m).
Depois calçámos as tábuas e descemos o longo glaciar Grenz rejubilando de prazer pela grande velocidade que a boa neve nos permitia alcançar. De vez em quando tínhamos de parar para descontraír as pernas pois a descida era muito longa.
O nosso objectivo seguinte era o Dufourspitze (4634m), o segundo cume mais elevado da Europa, mais conhecido pelo Monte Rosa. Estudando a carta, constatámos que o refúgio que lhe dá acesso, o Monte Rosahütte, se situava muito em baixo, a 2795m. Não valia a pena descermos tanto para tornarmos a subir pelo mesmo caminho na madrugada seguinte. Assim, resolvemos bivacar a meio do caminho, mas não sabíamos bem aonde. Atravessámos para o Rosagletscher a uma cota de 3500m e subimos pelo glaciar até encontrarmos um local apropriado.
Sentia-me contente por dormir novamente ao ar livre, num buraco escavado na neve. A sensação de solidão no majestoso silêncio de fim de tarde na montanha, apreciando a última luz do dia e fazendo parte desse crepúsculo, é de uma poesia indescritível. Sabemos que somos as únicas almas nas redondezas e que estamos irremediavelmente sós !
O dia raiou resplandecente, e saímos da nossa toca logo que os raios do sol chegaram até nós. A umas dezenas de metros passavam grupos de alpinistas provenientes do Monte Rosahütte que, com ares estremunhados, subiam lenta e silenciosamente no ar gelado. Nós os dois, que havíamos dormido muito bem, não nos cansávamos de elogiar a decisão que nos permitiu acordar tarde, e ainda para mais com toda a privacidade e em silêncio.
Após um chá com biscoitos, iniciámos uma longa ascensão até ao colo do Dufourspitze. A última centena de metros seria delicada devido à vertente muito abrupta e à neve ainda gelada. Neste tipo de condições, a única defesa que temos contra os escorregões é que os nossos reflexos nos possibilitem travar de imediato a queda com as arestas do ski, pois se tombamos já não há safa possível.
No colo já se encontravam umas dezenas de skis espetados na neve. A partir daqui usávamos os crampons e o piolet (4) para escalarmos a aresta de cerca de trezentos metros de neve, gêlo e rocha.
O panorama tornava-se cada vez mais magnífico e, através do ar límpido, conseguíamos alcançar todos os grandes cumes do Valais entre os quais, e muito próximo, o conhecido Cervin, ou Matterhorn, (4477m).
Pouco abaixo do cume havia algumas passagens delicadas que provocaram ajuntamento e tempo de espera, especialmente devido a um grupo de principiantes de um clube suíço acompanhados por guias.
No cume, além das placas comemorativas e religiosas em bronze, cravadas na rocha à boa maneira suíça, encontrava-se uma caixa de folha que continha um livro onde cada um inscrevia o seu nome. Esse acto simples e simbólico deixou-nos o grato sentimento de que ficaríamos ligados à História daquela montanha.
A descida para Zermatt iria ser longa e fastidiosa: cerca de três mil metros de desnível, quase sempre em skis, enfrentando todo o tipo de neves e de vertentes.
O término do Grenzgletscher, uma longa e ampla planície glaciar, oferece o enorme prazer de deslizarmos suavemente mais de uma hora, atordoados de cansaço e com os pensamentos suavemente embalados.
Entramos na zona de sombra no final do glaciar, sinal de que o nosso périplo está prestes a acabar.
Olhamos para trás e observamos pela última vez o Monte Rosa, majestoso e resplandecente sobre o céu azul.


Gonçalo Velez
1989


(1) - As peles são coladas sob os skis com o pêlo dirigido para trás o que permite a necessária aderência mesmo para subir.
(2) - As fixações dos skis permitem duas posições: marcha, em que a bota articula num movimento de marcha natural presa ao ski no seu extremo posterior e, descida, em que o calcanhar da bota se fixa ao ski e todo o conjunto funciona como se fosse um normal ski de pista.
(3) - Crampons: placas de aço com 12 pontas cada que se aplicam na sola das botas para caminhar no gêlo.
(4) - Piolet: picareta de alpinismo

(5) - O João referido no texto é o Garcia.