quarta-feira, outubro 31, 2007

Carta ao Ministro da Saúde
















Venho alertar-vos para a indisciplina tremenda que se faz sentir no sistema de saúde português, tanto público como privado e que se traduz sobretudo na grave falta de pontualidade dos prestadores de serviço!
Os médicos demonstram uma enorme falta de respeito pelos utentes por raramente cumprirem os horários.

Os serviços estão organizados para desperdiçarem uma quantidade enorme de tempo aos utentes. É habitual perder-se uma tarde inteira ou uma manhã para se ter uma consulta.
O sistema já encara este desperdício como normalidade.
Em Portugal, a população não tem outra solução senão conformar-se com este estado inaceitável de deficiente organização dos serviços de saúde.
Subscrevo um seguro de saúde privado e, no hospital que utilizo (CUF), a falta de disciplina é idêntica, a mentalidade de médicos e de funcionários é quase igual ao do sistema público.
Este hospital nem sequer tem um processo de auscultação da opinião dos utentes. Já quis reclamar e não soube a quem dirigir a minha mensagem. Já o fiz pelo menos uma vez e nunca obtive uma resposta.

O País está a desperdiçar milhões de horas de trabalho com a indisciplina atroz que reina no mundo da saúde em Portugal!

A nossa produtividade poderia ser largamente beneficiada, e o desenvolvimento nacional muito acrescido, caso V Exa conseguisse inverter o estado de coisas que exponho acima.



terça-feira, outubro 30, 2007

Lembrando o Bruno e o RD


Na primavera de 2002 participei numa expedição ao Makalu (8470m).
Nas primeiras duas ascensões escalei com o RD Caughron, americano de Berkeley (Califórnia) com 58 anos de idade, um b
em sucedido gestor de sistemas
informáticos. Pessoa sociável e divertida, que lia a The New Yorker, e com quem conseguia ter conversas para lá da esfera do montanhismo.
Na nossa segunda ascensão o RD falava-me muito no Makalu La, o colo a 6900m que teríamos de dobrar para montar o C2 (7400m).
No dia em que acordámos no C1 (6500m) para seguirmos para o C2, ele acordou mais cedo do que é normal e falava-me entusiasticamente em irmos dormir ao C2. Como ainda não havia um trilho,
nem cordas, nem um reconhecimento desse itinerário, respondi-lhe friamente de que talvez não fosse boa ideia irmos carregados sem sabermos se lá chegaríamos.
Após muita insistência dele, lá carregámos uma tenda, sacos-cama, gás, panelas, fogão, alimentos, etc preparados para acampar no C2.
Nesse dia alguns alpinistas com os seus sherpas subiam ao Makalu La e montavam-se cordas. Nós subíamos lentos.
Por volta das 16h os sher
pas e os demais alpinistas ocidentais começaram a descer. Tinham fixo as cargas a amarrações e desciam alegando que as cordas fixas não chegavam ao cimo do corredor.
Continuámos lentos e sentindo algum cansaço, mas com capacidade para continuarmos por mais horas, até que atingimos o extremo da última corda.
O RD mantinha uma enorme teimosia em continuar!
Eu informei-o de que não seguia e que a minha decisão era a de descer para o C1.
Expliquei-lhe que estávamos carregados e cansados, que a neve no corredor a 45º tinha pouca consistência e sem cordas fixas constituía um risco acrescido, que o dia já ia longo e nós escalávamos
lentos e arriscávamo-nos a não atingir o topo do colo antes do caír da noite, que ainda para mais não tínhamos a noção da distância que nos separava do C2 nem das dificuldades que poderíamos enfrentar.
O RD concordou com tudo o que lhe expus, mas… decidiu que continu
ava!
Tentei convencê-lo a descer comigo: “é melhor jogar pelo seguro, amarramos aqui as cargas, descemos agora, e amanhã regressamos para tentarmos subir ao Makalu La”.
Eu estava perante um alpinista experiente que realizava pelo menos a sua quarta expedição a um cume de +8
000m. Tinha-lhe explicado as razões do meu abandono e ele percebeu-as. Sabia certamente quais as consequências dos riscos que lhe falei, e nada mais pude acrescentar.
Senti-me vagamente culpabilizado por abandoná-lo, mas sabia que a minha decisão era claramente baseada na prudência, e a dele baseada na obstinação ce
ga e no desvario.
Nada mais pud
e fazer…
Cheguei ao C1 era noite cerrada.
No dia seguinte às 8h, o italiano Fabriano vem ter comigo à tenda dizendo-me que o RD estava “morto”.
Os dois suíços, os únicos que tinham dormido no C2, tinham descido e passado por ele. Estava sentado n
uma rocha, uns 20m do local onde nos tínhamos separado. Tinha o casaco aberto e as mãos nuas, o saco cama tinha desaparecido, e aparentava estar em coma. Os suíços acharam que não tinham meios de ajudá-lo.
Nessa manhã o vento intensificou-se muito. Mesmo assim, o eslovaco Martin ainda tentou subir com medicamentos, mas acabou por desistir por cansaço e pelo estado do tempo que se agravava.


A conclusão que desejo apresentar deste episódio é a de que escalar cumes com mais de 8000m é uma actividade altamente exigente reservada a alpinistas muito experientes, que possuem total autonomia no campo técnico, físico e psicológico.
Esta é a disciplina mais elevada do alpinismo em todos os aspectos!
Se decidem participar neste tipo de actividade arriscam a vida, e fazem-no sobretudo com consciência dos risc
os objectivos e subjectivos envolvidos.
Em suma, sabem que podem morrer por via das suas próprias decisões e act
os. Cada alpinista é um ente autónomo, que faz parte de uma equipa, é certo, mas que tem iniciativa e vontade próprios.
Como em qualquer actividade onde se quebram barreiras e se ultrapassam as marcas estabelecidas, nos Himalaias não há regras definidas
e cada qual conhecendo os seus limites (ou julgando conhecê-los) procura exceder-se através do esforço
e da inovação.
É muito difícil con
testar à priori a iniciativa de um alpinista. Há feitos excepcionais que resultaram de ideias aparentemente “loucas” e que a maioria à priori condenou.
A única coisa que o João Garcia poderia ter feito junto do Bruno Carvalho no Shishapangma quando se cruzaram perto do cume, num episódio idêntico ao que exponho acima e ocorrido há um ano, seria aconselhá-lo a ter cuidado e a perder o menos tempo possível.
O atraso do Bruno nada de errado poderia denunciar.
E se algo de errado se passava com ele, teria de ser o próprio a saber decidir renunciar.
Se ele atentava um 8000m tinha de estar à altura das exigências da tarefa, em todos os seus aspe
ctos mais críticos.
A equipa que ele integrava não era uma equipa enquadrada por um guia como a
contece nas expedições comerciais. Mas, mesmo nestas, o guia acompanha para coordenar a equipa e decidir a táctica. Não acompanha para “tomar conta” dos clientes.
Já me atrasei em diversas situações, como para tentar recuperar a circulação num polegar ou estar 30 minutos a tentar abrir uma abertura de velcro na traseira das calças para poder obrar a 8400m!
O Bruno tinha de ter
a capacidade de decidir se estava capaz de prosseguir, e até onde.
Decidiu prosseguir, e provavelmente decidiu bem, por que se sentiria em boas condições.
Errou na descida do cume e infelizmente pagou com a vida.
Ninguém o
poderia ter evitado, só ele.

Gonçalo Velez


PS: Dias depois de escrever o texto acima, encontrei-me com o João que acrescentou dois dados:
a) Acordou com o Bruno, quando se separaram, que este teria como limite de horário as 14h para dar meia volta e descer;
b) Entregou-lhe o telefone de satélite para ele poder comunicar com o acampamento base, e daqui poderiam comunicar por rádio para o João no C3, caso o Bruno precisasse de ajuda.

Nota: É inacreditável existir gente que opina
sobre assuntos delicados e sérios, sem nada conhecer do assunto, tanto da matéria, como do contexto em que a acção ocorreu. Revelam ignorância e má fé!
O editorial do último panfleto da Federação de Campismo de Portugal (nº 15, Jul-Ago-Set 2007) é disso um exemplo flagrante e de muita gravidade.
Demonstra uma grande irresponsabilidade no que pretende questionar, não apresentando quaisquer fundamentos objectivos para tal.